domingo, 6 de setembro de 2009

Inspiração




Um solitário homem vive num cômodo com paredes de concreto, quebrando cada uma com uma marreta deformada. Estava em busca de uma passagem secreta pra algum lugar bem distante daquele mundo monocromático; porém, quanto mais ele quebra, mais parece estar preso.

_Malditas paredes sem fim! Será que não há nada do outro lado, a não ser concreto?

Exausto, o homem se deita no chão e começa a olhar pro teto. Algo chama sua atenção.

_Alô, quem deseja?

Era Daisy, sua irmã. Queria saber se a filha dela poderia dormir na casa dele, já que ia prum encontro. Estava ocupado, tentando escrever um novo livro, mas permitiu.

_Tudo bem traz a criança, to com saudade dela! É preciso viver para haver inspiração, não?
_Mas por quê alguém colocaria uma cordinha presa no teto?

Aquilo era estranho mesmo. Pelo fato de parecer avulso, não devia haver nenhuma serventia para aquilo. A não ser que...

À noite, como combinado, Daisy trouxe a filha. Listou tudo o que o irmão deveria fazer, inclusive não deixá-la entrar no computador, pois estava de castigo. E assim que a mãe partiu para o encontro, o tio, com um enorme sorriso, perguntou:

_O que quer fazer, gatinha?

Pulou o mais alto que pode. Nem perto chegou da corda. Juntou um pouco do entulho e ficou de pé em cima dele. No segundo salto, tropeçou e se ralou no chão. Ficou um bom tempo olhando pro alto. Sua expressão passa a ser de alívio. Olha para a marreta, que descansava.

Do quarto, vem um grito:

_Tio, ajuda eu aqui um instante?

O homem estava muito ocupado no notebook. Tentara começar a estória de um casal, que é separado pela repressão do governo militar. Falar do amor sem inspiração é “mais do mesmo”. Então pensou na estória de um jovem, filho das elites do país, que roda o mundo e vê a pobreza de perto; mas não estava a fim de fazer um mini-che. “Puxa, será que já escreveram de tudo nos livros?”, pensou.
 

Ao se postar na porta do quarto, preocupado em perder os arquivos do computador, pergunta com um sorriso amarelo:

_Algum problema, jujuba?

_ Não, tio, é que eu queria saber o que a minha amiga mandou pra eu.
Era a Internet, pulsando de informações, atualizadas a cada instante. Colocando a mão nos seus ombros e olhando dentro dos seus olhos, fez uma pergunta direta na lata:

_Minha amada, como é que você pode ter um Orkut e não saber ler?

Com o objeto em mãos e um brilho enorme nos olhos, o homem sobe de novo no entulho. Olha fixamente em direção para a corda. Com um grande impulso, ele joga a marreta para o alto. Grande estrondo. Pedaços do teto caem, juntos com a corda; contudo, ela continua pendurada.

Com o olhar colado no chão e a voz embargada, a sobrinha disse:

_Meus amigos da escola riem de mim porque não sei ler, tio. Todos sabem ler, menos eu...
_Amor, quando eu era pequeno, também tinha problemas com leitura. Me perguntava como as pessoas conseguiam decifrar essas letrinhas e, delas, se emocionar. Queria passar por isso, mas parecia impossível. Até que seu avô leu um livro pra mim que mudou minha vida.
_Qual? – já com os olhos encharcados.
_O Menino Maluquinho!

E falei de como ele era impossível; suas aventuras, como se dava bem com os amigos e as namoradas, que o tempo era um amigão dele...

_Tio, o senhor tem esse livro aí? – perguntou, dessa vez, com os olhos cintilantes.

Ele foi dançando até a estante e puxou o livro. No meio de tantos livros sérios de política, filosofia, direito, sociologia e outras ciências, o livro do Ziraldo mais parecia estar no lugar errado.

_Gatinha, de todos os livros que eu li, este é o melhor! – disse com certa nostalgia.
_Nossa, deve ser muito bom, então! Lê pra mim, tio, lê, lê, lê, lê, lê... (x97)
_Calma! Assim você vai cair da cadeira! – disse lembrando da irmã.

Puxou a corda com força. Estava presa. Lá de cima vinham raios de luz. Pensou em subir, mas relutou por causa de sua condição física (leia-se obeso). Como poderia ele desistir de sair daquele cômodo, depois de tanto esforço? A saída logo ali, e ele já se coloca como derrotado, sem mesmo tentar subir?

Olhou novamente para o buraco no teto e a corda. Era impossível subir; mas devia ser tão lindo lá em cima! Por quê não tentar?

Largou a marreta no chão e segurou a corda com toda sua força. Começou a subir devagar, mas ia, pelo menos.

Pensou em ler o livro pra menina, mas lembrou dos afazeres. Pensando bem, no entanto, era um livro tão pequeno, de leitura fácil, não demoraria nem meia hora pra acabá-lo. Assim, para a alegria da criança, colocou a menina no colo e começou a ler o clássico:

_“Era uma vez um menino maluquinho...”
_Caralho, eu não vou aguentar mais!

Já estava há meia hora agarrado na corda. Seus músculos estavam doloridos demais e sua boca, seca, ao contrário das mãos, que quase estavam escorregando da corda. Vou largar e tentar de novo, pensou. Porém, imaginou seu corpo batendo nos entulhos no chão; mas não havia jeito, acabaria soltando as mãos da corda por falta de força.
Foi quando uma borboleta posou em suas mãos.

_Puxa, tem borboletas lá em cima! Deve ter flores também! Se eu cair daqui, posso não ter outra chance de subir. Eu to quase chegando, já dá pra ver o céu. Vambora!!!

Ao terminar a estória, a sobrinha do escritor estava maravilhada.

_Tio, tio, lê outra estória pra mim?
_Jujuba, agora não dá mais, o tio tem que continuar com o que estava fazendo.
_Tio, o senhor ta chorando?

Uma lágrima tinha caído no livro. Rapidamente, o tio o fechou.

_Nada, é suor, é suor, o tio ta cansado...
_Mas seus olhos estão vermelhos!
_Então! Ficar muito tempo no notebook dá nisso!

Tirou a menina do colo e se mandou para a cozinha. Quando a criança se deu conta da situação, ele já estava na janela da sala bebendo e olhando para os prédios com um olhar de cachorro abandonado. Automaticamente, ela correu até o tio e deu um enorme abraço nele, o assustando. Correu de volta para o quarto e o deixou sozinho.

No quarto, começou a folhear o livro responsável pela melancolia do tio, observando cada desenho. Deitou na cama com ele ainda aberto e exclamou:

_Que menino maluquinho!

Com um esforço sobrenatural, o rapaz conseguiu subir pela corda toda. Ela estava presa num grande suporte de madeira, tipo aqueles usados para enforcar alguém. Apesar disto, a vista do lugar que estava para o horizonte era linda. E se deu conta que estava no alto de uma montanha e, ao fundo, havia uma enorme floresta de ipês de todas as cores. Ao redor, flores de diversos tipos e várias borboletas exóticas. No céu, um lindo arco-íris abraçava o sol. Tudo o que ele pode falar diante de tanta beleza foi:

_Que lindo!

Por um momento, o escritor continuou ali parado, espantado. Foi quando pegou o laptop e começou a digitar, feito um insano.

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1. "E era montado num foguete destes que ele saía do quarto a voar outra vez pela mesa da sala, pelas grades da varanda, pelas cercas do quintal. E todo mundo ficava alegre de novo, ao ver de volta a alegria da rua!" (Ziraldo. O menino maluquinho. pp. 70. Editora Melhoramentos)

2. Movimento OR318:






3. O fenômeno visto na imagem que ilustra o conto se chama Halo. E a foto foi tirada por TaniaC

4. Bom feriado e lembrem-se: há 187 anos atrás, um português, após se cagar nas margens plácidas do Riacho Ipiranga, por conta de uma disenteria, gritou bem forte para todos ouvirem: "INDEPENDÊNCIA OU MORTEEEEEEEEE!!"

;***



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5 comentários:

Daniel Simon disse...

Texto interessante, e ai a menina aprendeu a ler?
KKKKKKKKK

Joy disse...

Muito bom.. não me deu vontade de parar de ler enquanto o fazia!!

Milagre!! "Olá terráqueo" não é subjetivo?! Hihihi!
Não sei se tu leu lá no blog, a postagem de antes da que você comentou, "Quando o Sol se for". É um "conto contado" no futuro. Se leu espero que tenha gostado.

Bjo

Aninha disse...

Menino Maluquinho é show msm!!!!
Como este post!!!!
É tão bom qnd vc esta inspirado, rsss

Bjks
(Hj tem Oceanos!!! Rsss)

Wilian Bincoleto Wenzel disse...

Poooxa.!

Muuito bom o texto, essa libertação dele, meio que saiu do inconscinte que o aprisionava!

Sobre a "injustiça" comentada no meu último texto: Eu já sabia que não foi tia Cássia quem compôs Blues da Piedade, mas de todos os artitas que conheço cantando ela, a Cassinha é a que eu mais gosto! Mas, mesmo assim, obrigado pela observação!

Um Abração!

mari disse...

lindo o conto! ")